Os Mutantes: 55 anos de "A Divina Comédia Ou Ando Meio Desligado"
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"A Divina Comédia Ou Ando Meio Desligado", d'Os Mutantes, completa 55 anos de lançamento em 2025. |
Neste mês de março, o terceiro disco d'Os Mutantes, "A Divina Comédia Ou Ando Meio Desligado", completa 55 anos de lançamento. Gravado em outubro de 1969 nos estúdios Scatena, em São Paulo, a obra foi produzida por Arnaldo Saccomani (1949-2020) e lançado pela Polydor.
O material ficou marcado como a estreia do grupo como um quinteto, pois,
além de Rita Lee e os irmãos Arnaldo Baptista e Sérgio Dias, o baterista Dinho
Leme e o baixista Liminha reforçaram o grupo. O álbum foi um marco na
discografia não só da banda como do rock brasileiro, pois o trio abandonava os
elementos mais voltados ao Tropicalismo de seus trabalhos anteriores e mais
dedicados ao rock, em especial, o psicodélico.
Logo de cara, o disco começa com a clássica “Ando Meio Desligado”,
que deixa nítido a pegada do álbum: uma mescla atrevida de psicodelia e pop,
com Rita Lee fazendo uma interpretação memorável e um instrumental que passeia
entre o groove do baixo e os teclados hipnotizantes de Arnaldo Baptista. A
música é um dos maiores clássicos da música brasileira de todos os tempos. Vale
a pena conferir o cover feito pelo Pato Fu também. Em seguida, a obra nos
brinda com “Quem Tem medo de Brincar de Amor”, que celebra a
simplicidade de um amor juvenil, que tem uma pegada iê-iê-iê, destaque para a
brincadeira que Rita e Arnaldo fazem com sotaques, mostrando a veia debochada
da banda. A terceira faixa é a sombria “Ave, Lúcifer”, com um
instrumental com pitadas de folk e elementos teatrais. E, em um tom sombrio, a
letra parece evocar imagens de um Éden alternativo, onde elementos
tradicionalmente vistos como puros ou sagrados são mesclados com referências ao
infernal e ao proibido, representado pela figura de Lúcifer, em uma mistura de
erotismo e sátira religiosa. Na sequência, aparece “Desculpe, Babe” que,
apesar de sua simplicidade, foi bem trabalhada, com uma letra que reflete a
decisão do eu lírico de deixar uma relação que impede sua realização pessoal. Os
vocais de Rita e Arnaldo, mais uma vez, foram certeiros. E, encerrando o lado
A, “Meu Refrigerador Não Funciona” que, apesar da letra aparentemente
ingênua por falar a respeito de um eletrodoméstico quebrado, camufla um vocal
poderoso de Rita Lee, parecendo se inspirar em Janis Joplin, e um instrumental
caótico e experimental que faz o ouvinte viajar na Psicodelia.
O outro lado do disco começa com “Hey, Boy”, com um arranjo à lá
doo-wop, faz um julgamento leve em relação ao típico jovem burguês por conta da
superficialidade e o materialismo presentes em sua vida (nos tempos atuais
seria uma espécie de “farialimer”?). Depois, vem “Preciso Urgentemente
Encontrar Um Amigo”, regravação da dupla Roberto e Erasmo Carlos, em que Os
Mutantes mantiveram a pegada pop e dançante, com uns toques psicodélicos,
especialmente pelos teclados de Arnaldo Baptista, além do belo trabalho da “cozinha”
de Liminha e Dinho Leme. Em seguida, outro cover: “Chão de Estrelas”, de
Silvio Caldas, em que o grupo transforma o clássico que transita entre a
melancolia e a celebração da vida simples, com uma atuação impecável de Arnaldo
Baptista e, claro, com a versão que ficou a cara deles. Posteriormente, em “Jogo de Calçada”,
que é a mais fidedigna do estilo da banda: um encontro perfeito entre rock e
pop, com um refrão grudento e arranjos sofisticados que mostram a versatilidade
da banda. Já em “Haleluia”, Os Mutantes já davam indícios o universo que
iriam explorar posteriormente, o Rock Progressivo. Influenciados pelo Jazz e o
Gospel, a canção tem uma atmosfera fora do comum e o baixão marcante de Liminha
é um caso à parte. E, para encerrar, “Oh! Mulher Infiel”, como o título
entrega, fala da traição e também da dualidade feminina e, apesar da letra
curta, ela é cheia de significados e emoções, que nos leva à reflexão das
relações e da dor da infidelidade. E, assim como a faixa anterior, a música é
repleta de experimentações e mudanças inesperadas de andamento.
Vale destacar a capa e a contracapa de “A Divida Comédia...” que, de formas diferentes, afrontam o
conservadorismo vigente na época (afinal, o Brasil vivia sob o Regime Militar).
Na parte da frente, Rita Lee, Arnaldo Baptista e Sérgio Dias reconstituem a
pintura de Gustav Doré para a obra-prima do poeta italiano Dante Alighieri, que
traz o nome da obra. Já na imagem detrás, Rita deita-se com os irmãos Baptista
em um sugestivo banquete e Leme, com fardas militares, surge na cena.
E, assim, misturando psicodelia, humor, irreverência, Os Mutantes com “A Divina Comédia Ou Ando Meio Desligado”
os credenciam como uma banda de estilo único no rock brasileiro, digamos, que
era um “som de outro mundo”. Clássico, necessário e obrigatório, pois contém
uma viagem sonora que fisga o grupo no ápice de sua criatividade.
A seguir, a ficha técnica e o tracklist da obra.
Álbum: A Divina
Comédia Ou Ando Meio Desligado
Intérprete: Os Mutantes
Rita Lee: voz, percussão e efeitos
Arnaldo Baptista: voz,
teclados e baixo
Sérgio Dias: voz,
guitarra e baixo
Liminha: baixo
Dinho Leme: bateria
Naná Vasconcelos: percussão
Raphael Villardi: violão e
vocais
Rogério Duprat: arranjo
orquestral
1. Ando Meio Desligado (Arnaldo
Baptista / Rita Lee / Sérgio Dias)
2. Quem Tem Medo de Brincar de Amor (Arnaldo
Baptista / Rita Lee)
3. Ave, Lúcifer (Élcio Decário /
Arnaldo Baptista / Rita Lee)
4. Desculpe, Babe (Arnaldo Baptista
/ Rita Lee)
5. Meu Refrigerador Não Funciona (Arnaldo
Baptista / Rita Lee / Sérgio Dias)
6. Hey Boy (Élcio Decário / Arnaldo
Baptista)
7. Preciso Urgentemente Encontrar Um Amigo (Roberto Carlos / Erasmo Carlos)
8. Chão de Estrelas (Orestes
Barbosa / Sílvio Caldas)
9. Jogo de Calçada (Ilton Oliveira
/ Wandler Cunha / Arnaldo Baptista)
10. Haleluia (Arnaldo Baptista)
11. Oh! Mulher Infiel (Arnaldo
Baptista)
Por Jorge Almeida
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