Família paterna - Crônica do livro "Devaneios da Vida", de Claudia Ipolito*
Foto meramente ilustrativa. |
Estudei na Universidade Estadual de Londrina e, em quase todos os semestres, surgia uma greve de professores. Às vezes era por alguns dias, mas em outros momentos ultrapassava um mês. E foi em uma dessas greves intermináveis, sem data para acabar, que resolvi passar uns dias na casa do meu avô Luís.
Era o mês de abril e mais uma greve se instalara na
universidade. O clima estava bom, nada para fazer, fiz minha mala e lá fui para
Peruíbe, cidade litorânea no estado de São Paulo.
O vovô Luís morava sozinho e ficou muito feliz com a
minha visita. A casa era térrea, em estilo colonial, meio fora de sintonia com
o clima litorâneo, mas era ótima. Casinha branca com portas e janelas azuis
escuras. Os batentes eram amarelo ouro. No quintal havia um caramanchão onde
fazíamos churrasco. Na frente havia uma varanda com duas redes e duas cadeiras
largas de vime.
Era de tarde, logo após o almoço. O vovô sentou-se
em uma cadeira de vime e acendeu um cigarro de palha. Fui atrás dele e me
deitei na rede.
Eu sempre gostei de ouvir as histórias de vida dos
mais velhos. Sempre prestava atenção, pois, enquanto ouvia a narrativa, logo
imaginava a cena a qual estava sendo relatada. Ainda mais histórias de
antigamente.
— Vô, como foi a vida quando vocês vieram da Itália?
A família veio ao Brasil no final de 1913, início de
1914, e meu avô tinha apenas cinco anos, mas lembrava-se da viagem de
navio, que durou mais de um mês para atravessar o Atlântico. A viagem foi
marcante para ele.
Meu bisavô, Costabile, que, traduzindo para o português,
é Gustavo, era marinheiro. Casado com Tereza, tinham uma filha de nome
Josephina e o pequeno Luigi, meu avô, o qual todos chamavam de Seu Luís aqui no
Brasil.
A família era originária de uma pequena ilha no sul
da Itália chamada Castellabate. A principal renda local era a pesca. Não havia
muita oportunidade de trabalho por lá naquela época. A Europa estava em crise.
A Primeira Grande Guerra estava prestes a iniciar.
O jovem Costabile, o qual era marinheiro e com o
sonho de uma vida melhor, veio ao Brasil para saber sobre a viabilidade de
mudar para a América do Sul. Diziam que nas Américas havia oportunidade para
ganhar dinheiro, pois era o que chamavam de Novo Mundo. E foi assim que
aconteceu.
No início do século XX não havia muita mão de obra
no Brasil, pois, com a abolição da escravatura, os senhores de terra buscavam
imigrantes para o trabalho na lavoura. Apesar de Costabile não ter essa
experiência, aceitou uma oportunidade em uma propriedade rural em Votorantim,
interior de São Paulo. Sendo assim, escreveu a sua esposa pedindo para que
viesse ao seu encontro com as crianças, pois ele os aguardaria no porto de
Santos.
Tereza, com gravidez adiantada, embarcou no navio
com seus dois filhos pequenos rumo ao Brasil. Seria uma viagem longa
atravessando o oceano Atlântico. Meu avô contou que sua mãe deu à luz durante a
travessia a uma menina, que recebeu o nome Marina, mas que infelizmente não
vingou. Morreu no navio. Foi jogada ao mar envolta em panos.
Finalmente chegaram ao Porto de Santos e foram à Casa
do Imigrante, onde Costabile aguardava por eles. Na sequência seguiram para o
desconhecido universo que os aguardava.
Não falavam português, não conheciam o Brasil, não
entendiam de plantação, mas a coragem e a determinação daquele jovem casal em
dar uma vida melhor aos seus filhos fez com que seguissem adiante. Não vieram
sozinhos, alguns familiares de Tereza e Costabile também fizeram a travessia
para o Novo Mundo.
Chegaram à fazenda e foram instalados na antiga
senzala dos escravos.
— Toda noite ouvíamos choro e arrastar de correntes
— disse o vovô. — As paredes estavam manchadas de sangue. Não adiantava pintar.
Meu pai passava cal para ficar branquinha, mas dali a pouco a parede voltava a
ter a marca da dor dos escravos.
Eu fiquei ouvindo as histórias da fazenda, da
senzala assombrada, e ele contou que, não demorou muito, saíram de lá e foram
morar em Sorocaba.
A família foi crescendo, nasceram os gêmeos Romeu e
Julieta, Nara, Angelina e o caçula Ermelino.
Vovô contou que, quando era adolescente, foi
trabalhar na padaria do seu tio em Sorocaba e aprendeu a fazer éclair, mais
conhecida como bomba de chocolate. As quais eram enormes e deliciosas.
A família foi para São Paulo capital após a Primeira
Grande Guerra, ou seja, por volta de 1920, e nunca mais saíram. Foram para o
bairro de Vila Mariana, no qual havia uma grande concentração de imigrantes
italianos. Instalaram-se em um sobrado na Rua Humberto I, nome do imperador da
Itália. Todos no bairro conhecem a rua como Humberto Primo, “primeiro” em italiano;
até mesmo nos dias de hoje os moradores do bairro conhecem a rua dessa forma.
— Vô, como o senhor conheceu a vovó?
— Ah! Esse dia foi incrível. Eu trabalhava na
fábrica Nadir Figueiredo. Estava voltando após o dia de trabalho. Saltei do
bonde e ainda tinha que andar mais uns cinco quarteirões para chegar em casa.
No meio do caminho começou a chover muito forte. Vi uma venda, um empório
aberto, e entrei. Lá estava ela, a sua avó. Ela era a filha do dono e estava
fechando a porta para a chuva não molhar o interior do empório.
Os olhos dele brilharam nessa hora. Continuou.
— Quando eu olhei para aquela moça tão bonita, logo
pensei: eu ainda vou me casar com ela! E me casei.
Foi assim que Luigi e Nanina se conheceram. Ambos de
família imigrante italiana, vindos parar no mesmo bairro num país distante.
Para facilitar a vida dos brasileiros com os nomes estrangeiros, eram conhecidos
como Sr. Luís e Dona Anita. Tiveram quatro filhos, e um deles era o meu pai,
Gustavo. Re cebeu esse nome em homenagem ao seu avô. A filha mais velha recebeu
o nome de Thereza, depois a Rosa, em homenagem à avó materna, e por último, a
raspa de tacho, Marina. Todos os quatro filhos receberam nomes de um ancestral.
Lembro com muita saudade da infância na casa dos
meus avós. Da mesa farta aos domingos, tios, primos, agregados, gente para todo
lado. Sempre aquela abundância de comida, apesar da vida simples. O que marcou
muito foram as comidas típicas italianas, que quase não vemos nos dias de hoje.
Meu avô trabalhou até se aposentar na Nadir
Figueiredo. Minha avó dava aulas de costura. Minhas primas, minha irmã e eu
brincávamos com vestidos e coisas guardadas em um quartinho. Tinha carretel de
linhas, lã, tecidos, aviamentos, uma verdadeira bagunça de coisas da vovó.
Brincávamos no quintal, na garagem que não tinha carro, era uma festa.
O sonho dos meus avós era morar no litoral. Estavam
na casa dos 60 anos, aposentados, filhos casados e crescidos; foi então que
decidiram levar o sonho adiante.
A filha mais velha, Thereza, comprou uma casa em
Peruíbe. Luís e Anita foram conhecer e se encantaram com a tranquilidade do
lugar. Venderam a casa de São Paulo e compraram a casa estilo colonial em
Peruíbe.
No dia da assinatura da escritura, minha avó, após
assinar os papéis, ficou tão emocionada que enfartou e morreu. Sim, ela nunca
chegou a morar lá. Vovô não tinha como voltar atrás. A escritura da casa havia
sido assinada. A casa antiga de São Paulo foi vendida e agora só tinha a de
Peruíbe. Morou anos sozinho na casa colonial de esquina. Não deu tempo de viver
o último sonho com a jovem que conheceu naquela tarde chuvosa. Aos finais de
semana, feriados e férias, estávamos com o vovô, para que não ficasse tão
sozinho.
Fiquei muito feliz com aquela conversa na varanda.
Imaginei a dificuldade que passaram, a travessia para outro continente, as
conquistas, os períodos de escassez decorrente das duas grandes guerras, a
revolução de 1932 e tantos outros momentos históricos que viveram.
Hoje, todos já partiram para o plano espiritual. Só
ficou a tia Rosa, a qual passa dos 80 anos. Tanta coisa que aprendemos com
eles, tantas histórias que ficam na memória somente até a geração seguinte e
depois são esquecidas. Mas deixo aqui um breve relato da minha história paterna
para que seja levada para as próximas gerações.
Escrevi este texto hoje, em uma manhã chuvosa de
fevereiro, mês em que completou dois anos da morte do meu pai, Gustavo, filho
de Luigi e Nanina, neto de Costabile e Tereza. Agora estão todos juntos
novamente em outra dimensão.
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* Sobre
a autora: Claudia Lopes Ipolito vive em Sorocaba, no estado de
São Paulo. Médica veterinária de formação, com pós-graduação na área de
marketing, decidiu se dedicar a escrita depois de anos de experiência na
indústria farmacêutica veterinária. Após escrever manuais, textos técnicos
e uma pequena coluna no Jornal do Cambuci, finalizou Devaneios da
Vida, seu primeiro livro de contos e crônicas. Atualmente, trabalha
em seu primeiro romance.
Redes
sociais da autora:
Instagram: @claudiaipolito
Facebook: /claudiaipolito
Site: https://linkbio.co/
Confira
aqui o release do livro Devaneios da Vida!
Agradecimentos: Victória Gearini | LC Agência de
Comunicação
** Este conteúdo foi enviado pela assessoria de imprensa
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