ARTIGO: De Braços e Corações Abertos, por Mário Joanoni*
Foto meramente ilustrativa. |
Chegamos ao Teatro Estadual Maestro Francisco Paulo Russo e, logo na recepção, uma exposição singela homenageava a dupla “Tonico e Tinoco”, que por décadas embalou as famílias das roças e aquelas que se esforçavam para adaptar-se às florestas de concreto e chão de piche das cidades, buscando uma vida menos árdua ao sair do campo, repleta de saudade (Toda saudade é a presença da ausência de alguém, de algum lugar, de algo enfim, súbito ou não - Gilberto Gil). Da magia do rádio à válvula, dos discos de 78 RPM das velhas vitrolas à válvula, aos programas dominicais de Inezita Barroso, a dupla cumpriu sua missão de reconectar a vida no campo e suas raízes com aqueles que ainda sabem que a natureza muito tem a ensinar e que “A calma é irmã do simples e o simples resolve tudo”, como bem diz o artista Renato Teixeira.
Nesse
contexto caipira, já emocionados com a lembrança de nossos queridos e falecidos
pais que os cultuavam, ao subir as escadarias que levam à plateia há sempre um
convite à ascensão do sentimento, tais quais as linhas abstratas com que
Niemeyer presenteou o local, pedindo novos voos, mais altos do que os das
araras. Nos deparamos com um palco à meia-luz. Dava para sentir que ali houve
preparo emocional de horas, muita dedicação e carinho para distribuir entre o
público. Desciam do urdimento enfeites artesanais de tons equilibrados e
brilhantes, remetendo à cultura popular desde a primeira vista. Os pedestais
dos microfones, delicadamente enredados por ramas de vegetação artificial.
Violão e viola a postos. Teclado, acordeom, contrabaixo elétrico e duas flautas
transversais aguardando seus ‘escultores de sons’.
Sem
delongas, o flautista apresenta e chama ao palco o “Duo Música de Interior”,
formado pelo talentoso casal Aniela Rovani e Rafael Cardoso, que já pisara
nesse espaço em outras vezes, em outros projetos culturais e em outros
lançamentos de álbum. Não tivemos antes a oportunidade de assistir ao vivo, mas
sim de embebedar-se do seu conteúdo e estilo pelos canais de música e vídeo,
com muita admiração. Plateia atenta, apesar de ocupar apenas dois terços dos
lugares, no máximo, como já estamos acostumados.
De
antemão, já sabíamos que teríamos uma noite de rara sensibilidade, bom gosto e
profunda conexão com nosso interior histórico que sobrevive aos sobressaltos da
indiferença e, na via de mão dupla, de dentro pra fora e de fora pra dentro, já
que nós, nascidos em área urbana, mas suportados pelos ombros de antepassados
de duras lidas na roça, que cultivaram sua cultura musical e artesanal enquanto
entre nós estiveram. Aliás, um palco merecedor de todo respeito pelas muitas
personalidades que engrandeceram a cultura popular e erudita e que lá já
pisaram, dando o melhor de sua entrega artística.
Para
criar uma adesão imediata, num som deliciosamente bem mixado acompanhado de
competente trilha de iluminação, o Duo começa com a música “Amanheceu, peguei a
viola”, de Renato Teixeira, trilha do programa Som Brasil, da TV Globo,
produzido e apresentado pelo saudoso Rolando Boldrin, que sempre prezou em
tirar o “Brasil da gaveta”. Esse recurso de canções consagradas, provocado para
que as pessoas pudessem se sentir à vontade ao entrar em uma nova morada, se
repetiria no meio do espetáculo com outras canções importantes como “Um
Violeiro Toca”, de Almir Sater e Renato Teixeira, “Vide, Vida Marvada”, de
Rolando Boldrin, e no desfecho com a libertária e crítica “Disparada”, de
Geraldo Vandré e Theo de Barros. Todas surpreendentemente executadas com um
misto de arranjos próprios combinados com os originais, numa roupagem elegante,
de respeito e sensibilidade.
Mas
o mote do espetáculo não eram as músicas já admiradas por todos, e sim o
lançamento, por meio de projeto validado pelo PROAC, do álbum "Braços
Abertos”. A produção é composta por um repertório de dez canções autorais que
trazem a sonoridade característica do Duo Música de Interior, marcada pelo
violão, viola caipira e dueto vocal, numa nova textura trazida pela banda de
apoio formada por: Paulinho Leme (piano e acordeom), Adriano Tonon (percussão),
Ximba Uchyama (contrabaixo) e Rafael Beck (flauta transversal).
Canções
surpreendentes, trazendo o Brasil para dentro de nós, as memórias afetivas de
ancestrais, as lutas, as belezas, a importância do cuidar e do cuidar-se, ainda
mais quando somos afetados por notícias de um país incandescido, vitimando suas
matas, bichos e flores, em nome da ganância de alguns poucos que querem nos
enterrar a todos antes do tempo.
No
anúncio do álbum, uma grande e ousada promessa na palavra dos artistas:
“Acreditamos que ‘Braços Abertos’ tem o potencial de tocar corações e abrir diálogos
sobre a importância da nossa cultura e da música folclórica. Nosso desejo é que
o álbum seja uma ponte que conecta pessoas e culturas, promovendo um maior
entendimento e celebração das nossas tradições. Acreditamos que o público irá
viajar em uma jornada que contempla muita variedade rítmica, alegria,
ancestralidade, filosofia e a leveza da canção latino-americana”.
E
ainda: “Braços Abertos" é uma celebração da diversidade cultural e
musical, uma inspiração para novos caminhos e possibilidades, unindo ritmos
paulistanos com influências de outras regiões do Brasil e dos países vizinhos.
É, portanto, mais do que um simples lançamento musical, é uma declaração de
amor à música e à cultura latino-americanas, com os braços abertos para receber
e compartilhar todas as suas riquezas.”
Podemos
afirmar que o intuito do álbum, das canções, da sonoridade e da estética ao
vivo, cumpre religiosamente todos esses propósitos acima e nos trazem momentos
mágicos de paz e reencontro que tanto precisamos com nossas origens, comuns às
dos tropeiros musicais de todos os rincões desse imenso e colorido Brasil,
herdeiros que somos de uma beleza e valores que podem lançar nossos olhos para
o melhor de nossa "brasilidiversidade", como o Duo insistentemente
convidou durante a apresentação.
Nos
trabalhos do Duo Música de Interior, não há o efeito deletério moderno da
indústria cultural que promove uma experiência imersiva em um ‘curral
tecnológico’ ao som alucinado, com melodias repetitivas, ritmos hipnotizadores
e letras pobres, regadas a cervejas , que deixam apenas a 'plena' sensação de
"vazio". Pelo contrário, suas letras são poesia pura, prosa e verso
em coerência, como que evocando poetas como José Fortuna, Catulo da Paixão
Cearense e Renato Teixeira, sem, no entanto, buscar-se deles uma cópia, pois
são originais e de muita estrutura literária nas canções. As palavras são
escolhidas a dedo, quase artesanalmente, como as bordadeiras das roças que
teciam maravilhas fio a fio sob a luz do lampião após um dia de extenuantes e
rudes esforços. É a entrega do melhor bordado, digo, conteúdo, em prosa e
verso, como em “Quintilha pro Avô” dentre tantas outras letras profundas . As
melodias sensíveis e os concatenados arranjos não desperdiçam notas e acordes.
Todos os instrumentos têm sua voz e vez, falando o mesmo idioma sem competir
entre si ou com os cantores. Acompanhamentos melodiosos e harmônicos de
flautas, teclado e acordeom passeiam ao lado das linhas vocais, como que
jogando flores para o chão ser pisado pela dupla, também casada vocalmente.
Destaque para a interpretação expressiva e gestual de Aniela, que parecia estar
muito emocionada em apresentar-se na sua cidade natal e de Rafael, que flui o
canto com escalas e harmonias dificílimas nos instrumentos de corda, extensão
de seus próprios braços. O baixo preenche todos os grotões necessários, e o
percussionista navega pelo eclético mundo do folclore brasileiro e dos países
hermanos que continuam com suas veias abertas.
É
um casal que consegue traduzir toda a técnica apurada por anos a fio, suas
teses acadêmicas, sua entrega, num acervo antropológico e bem lapidado, com as
próprias experiências, sonhos e desejos mais nobres. Não foi apenas um show.
Foram histórias de vida, emoções, memórias e afetos se encontrando e se
abastecendo de novas cores, luzes e esperanças, ou se curando dos males que
fazemos à nossa história e aos ciclos infinitos de beleza, sempre que
pretensiosamente ficamos a eles indiferentes. Cabe observar que dividiram o
palco com bailarino local em uma das canções abrindo o espectro das expressões
e com o coro de vozes presenteado pelo incansável idealista maestro Ed Nelson,
que tantas vidas já transformou por meio da arte. Digno de nota que percebe-se,
nas entrelinhas, que o Duo Música de Interior é visivelmente preocupado com a
propagação da cultura e arte popular, também pelos vieses da educação.
Nossa
imensa gratidão pela generosidade do casal em presentear-nos a todos e pela
humildade de trocar ideias ao final do show, se misturando com o público,
atentos aos comentários, falando de suas experiências, dos novos projetos,
brilhando os olhos quando falam de sua obra, que não tratam como curadores, mas
como casal que tem nesse trabalho um filho, gestado e amparado com ternura,
devoção, e com a clara consciência que depois de crescido, terá de se dividir
com o resto do mundo…
Voltem
mais vezes a Araras, Rio Claro, Limeira e Piracicaba. Nosso ‘duplo interior’
precisa muito…
Um
admirador, em domingo de estesia.
* Mário Joanoni, jornalista
Agradecimentos: Ellen Bacci Fernandes
** Este conteúdo
foi enviado pela assessoria de imprensa
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