João Parahyba faz de Mangundi, seu novo álbum, um manifesto da música instrumental brasileira e universal, por Marcelo Pinheiro **

 

Foto meramente ilustrativa.

Aos 75 anos, percussionista do Trio Mocotó celebra seis décadas de carreira em álbum que costura samba, jazz, baião e a polirritmia afro

Rompendo um hiato de 14 anos desde o lançamento de O Samba em Ritmo de Jazz (Selo Sesc, 2011), o percussionista e compositor João Parahyba, cofundador do antológico Trio Mocotó, concluiu em julho de 2025 os registros de seu novo álbum autoral. Cumpridas as etapas de pós-produção, Mangundi chega às plataformas digitais em 31 de outubro. Composto de 8 temas inéditos, o disco também será editado em vinil pelo Selo Vitrine, gravadora independente paulistana com especial enfoque na difusão da música instrumental brasileira contemporânea. 

Registrado ao longo de 90 horas no estúdio Casa da Lua, com o produtor Janja Gomes no comando da engenharia de som e Paulo Serafim à frente da masterização, Mangundi empresta seu título de uma expressão que remete à infância do artista no Vale do Paraíba e tem o sentido de “misturar” coisas inusitadas. Procedimento que, na profusão de gêneros e polirritmias presentes no álbum – um amálgama entre jazz, baião, samba, funk e bossa-jazz–, sugere a síntese de uma espécie de manifesto musical construído a partir das memórias de formação, das vivências musicais e das referências artísticas e espirituais do percussionista, como a influência da cadência de matriz afro-religiosa, elementos que compuseram a personalidade musical singular de João Parahyba, que é também Ogan no Camdomblé e na Umbanda desde o começo dos anos 1970, por influência de Vinicius de Moraes.   

“Eu já procurei muitas vezes descobrir a etimologia dessa expressão, e tenho a suspeita de que ela tenha origem afro-brasileira, mas sei que desde criança eu escutava o pessoal dizendo que ia fazer um ‘mangundi’ quando queria falar de misturas inesperadas. Ou seja, Mangundi é também um resumo da minha história. Nasci numa fazenda no Vale do Paraíba, convivi, na minha infância, com pássaros, macacos e outros bichos da floresta às margens do Rio Paraíba, onde também fui capturado pela musicalidade do jongo, pelo cateretê, pelo catira, pelas Folias de Reis. Ao mesmo tempo ouvia muita música clássica com minha avó. Liszt, Debussy, Ravel, Chopin. Fui crescendo com essa mistura de informações”, explica João.  

Mangundi em detalhes
Com direção musical e arranjos do saxofonista Jota P. Barbosa, integrante do grupo de Hermeto Pascoal e que foi convidado por João para dividir a autoria de seis temas do disco, Mangundi ainda conta em sua instrumentação com a banda formada por Fernando César (piano), Cléber Almeida (bateria), Giba da Silva Pinto (baixo) e Rafael Kabelo (guitarra). 

“Jota P e eu tivemos um diálogo intenso na hora de definir os arranjos, e ele criou coisas tão bonitas para orquestrar minhas músicas que eu só podia dizer pra ele: ‘Bicho, agora você assina comigo!’. Eu sou muito ético nesse ponto. O Jota P, principalmente pela experiência do trabalho que ele tem com o Hermeto, é um músico muito perfeccionista. Eu sou o oposto dele, e deve ser por isso que a coisa deu tão certo. É a velha história: os opostos se atraem”, brinca João. 

O álbum traz também participações especiais de Nereu Gargalo, o magistral pandeirista do Trio Mocotó, presente em Xei Lá Town, que também conta com a levada samba-rock do violão de Janja Gomes; Jorginho Neto, que sopra o grave de seu trombone em Forró World; a flautista Morgana Moreno, que enche de sutilezas a irresistível Bolo de Fubá; o trompetista Luiz Gabriel, prese nte em Caramujo, e Mestre Dinho do Morro do Querosene, que imprime o ritmo hipnótico de seu berimbau no tema de abertura, Afrodunja, uma homenagem de João a seu saudoso amigo Suba, o produtor sérvio Mitar Subotić (1961 – 1999). Em quatro composições, o toque sofisticado do bandolinista Carrapicho Rangel imprime sutilezas harmônicas aos temas.    

“Já toquei free jazz, já fiz loucuras, mas jazz pra mim é uma coisa mais aberta, algo que vem da tradição de artistas como Duke Ellington e de uma turma mais velha que defendia a música como uma expressão livre de seus sentimentos. Movido por esse pensamento, depois de avaliarmos cerca de 40 composições que eu escrevi nos últimos 15 anos, eu e o EB escolhemos oito temas que foram arranjados pelo Jota P. Além dele, eu chamei vários amigos pra formar a banda, dois deles tocam comigo no Trio Mocotó, o Fernando e o Giba”, explica João. 

Com produção executiva de Eduardo Barreto, o DJ EB, produtor, beatmaker e fundador do Selo Vitrine, o álbum tem arte gráfica criada por Zoran Janjetov, quadrinista sérvio apresentado a João por Suba e reconhecido por ilustrar duas criações em HQ do cineasta Alejandro Jodorowsky: Antes do Incal e Os Tecnopadres. Colaboração que reitera o caráter personalíssimo e o trabalho artesanal das intenções da gravadora.

“Quando criei o Selo Vitrine, minha ideia era contribuir para movimentar e documentar a cena contemporânea de música instrumental brasileira e também poder homenagear em vida os músicos que ajudaram a pavimentar esse caminho. Ter a oportunidade de lançar um trabalho inédito de um artista da dimensão do João é, para mim, um orgulho gigantesco. Não consigo imaginar como seria a música brasileira sem a influência do encontro entre o Trio Mocotó e Jorge Ben. A levada percussiva que o João criou é algo único e sem precedentes”, defende EB. 

Aos 75 anos, João Parahyba se prepara para celebrar, em 2026, 60 anos de uma carreira cujo marco zero foi a contratação para atuar como percussionista do antológico bar O Jogral, epicentro cultural e boêmio da noite paulistana do final da década de 1960, criado pelo compositor Luiz Carlos Paraná. Às vésperas desse importante marco na trajetória de um artista que sempre prezou pela reverência a seus ancestrais e pela arte do encontro, Mangundi é também um álbum que tem como mote a celebração.

 “Assim como em Samba no Balanço do Jazz, fiz uma viagem ao passado para prestar homenagem aos meus professores dos trios, quartetos e quintetos de samba-jazz dos anos 1960, eu queria que Mangundi fosse uma síntese das minhas memórias musicais, da minha vida, e sobretudo que este fosse um disco feito com amigos, com uma sonoridade muito solta, que refletisse o espírito livre de uma banda da qual eu não fosse o líder, mas uma banda da qual eu faço parte.”

Reconhecido internacionalmente desde os tempos do Trio Mocotó – grupo que fundou n’O Jogral ao lado de Nereu Gargalo e Fritz Escovão e que acompanhou Jorge Ben Jor em álbuns históricos como Força Bruta e Negro é Lindo –, João é considerado um dos arquitetos do samba‑rock. Criador da “timbateria”, instrumento que atendia às demandas de pouco espaço e redução de decibéis d’O Jogral, ele também deixou a marca de sua cadência irresistível em álbuns e shows de Gal Costa, Gilberto Gil, Ivan Lins, Luiz Gonzaga, Paulinho da Viola, Dizzy Gillespie, Bebel Gilberto, entre outros.

Em abril de 2025, João e Nereu anteciparam a boa nova de que o Trio Mocotó voltaria a cair na estrada anunciando o cantor, compositor e multi-instrumentista Melvin Santhana, ex-integrante do Originais do Samba e d’Os Opalas, como sucessor do legado de Fritz e Skowa. Desde então, o trio tem feito uma série de shows que, diante da expectativa do lançamento de Mangundi nos palcos, agora devem dividir a agenda do percussionista. Algo que, para João, serve de combustível pra vida.

 “Música é emoção”, afirma. “Brinco muito com meus músicos sobre o paralelo entre música e religião. Nossa religião é a música, e o púlpito é nosso palco. Nossa missão é transmitir beleza e vibração”, conclui.

Essa dimensão espiritual do fazer musical é um dos eixos de Mangundi, álbum que transborda um frescor contemporâneo estabelecido em bases ancestrais. Entre o improviso e a memória. Entre o afeto e a invenção.

"Mangundi, por João Parahyba”

“Aos 15 anos, comecei a frequentar a noite de São Paulo, e como gostava muito de música, fui estudar bateria com o Rubinho Barsotti, do Zimbo Trio, que volta e meia me convidava pra dar umas canjas com o organista Renato Mendes. Apaixonado pela música, tranquei os estudos no Colégio Santa Cruz e comecei a frequentar o Jogral, a famosa casa noturna do Luiz Carlos Paraná. Ia pra lá quase toda noite, e o Paraná acabou me contratando para tocar regularmente. Como o som da bateria era muito alto, improvisei uma minibateria tocando com escovinhas um set de timba, chimbau e pratos. Com 16 anos, fui acolhido pela nata dos músicos do Rio de Janeiro e de São Paulo. Fui criado ouvindo grupos com aquela sessão rítmica em que todo mundo metia o pé, como as bandas do Tito Puente e do Mongo Santa Maria. Mas as linguagens vão se modernizando e vou me moldando com o passado e o futuro. Assim como influenciei e fui influenciado por DJs como Marky, Nuts e Patife, continuo trazendo comigo a ciência e a essência do samba, do forró e da musicalidade das religiões afro-brasileiras. O compositor, seja ele de canção, música instrumental ou de trilha, tem a capacidade mágica de transmitir a beleza que inspira as pessoas a fazerem algo parecido. Assim nasceu o Groove do Avião. Como se fosse o sample de um DJ, eu peguei um compasso de Água de Beber pra fazer uma homenagem ao Tom Jobim, meu maior ídolo musical, uma influência que vai muito além das harmonias e da coisa rítmica dele porque me identifico muito com o ser humano Antônio Carlos Brasileiro de Almeida Jobim, assim como me inspiro muito em Guimarães Rosa, que fala de um Brasil interior que eu conheço bem e que, infelizmente, a maioria dos brasileiros não conhece. Afrodunja é uma homenagem ao Suba, aos amigos e à família dele. O título  faz referência a um doce sérvio feito de marmelo – ‘dunja’, no idioma deles, significa marmelo. A mistura que faço nessa música tem muito a ver com a primeira gravação que ouvi do Suba, um remix de Samba da Minha Terra, na versão do João Gilberto. Ele fundiu esse registro com elementos de música eletrônica e vocais de bispos de Kosovo. Suba costumava me dizer: ‘Bicho, compõe sua música do seu jeito e faz tudo do seu jeito’. Procurei manter a mesma essência nesse novo disco. Faço tudo no meu tempo e não me deixo levar por essa coisa mercantilista de ter de lançar um disco por ano. Gravei Kyzumba (1996), um disco do qual tenho muito orgulho, fazendo tudo do meu jeito, da mesma forma que fiz O Samba em Ritmo de Jazz. Agora terei a felicidade de lançar o álbum Mangundi em LP, uma coisa bonita de realizar porque desde 1973 não lanço um trabalho nesse formato. Ano que vem completo 60 anos de carreira, e toda minha essência está nesse novo disco.” 

 Sobre o Selo Vitrine

Lançada em junho de 2023, a gravadora independente é uma plataforma de criação, registro e difusão da música instrumental contemporânea produzida no Brasil. A iniciativa é capitaneada pelo produtor e beatmaker DJ EB, que também é sócio do O Picco, pizza-bar paulistano fundado em 2016 que se consolidou como um polo de efervescência musical ao abrigar discotecagens, shows e sessões de improviso que já reuniram mais de uma centena de artistas e que culminaram na criação de um estúdio anexo ao pizza-bar e da gravadora independente.    

O Selo Vitrine aposta em um modelo de produção autoral baseada em curadoria. Seu primeiro lançamento, o LP duplo Existimos, Vol. 1, reuniu composições de artistas como Michel Santos, Bruno Belasco, Richard Metairon, Annete Camargo e Juliana Rodrigues, gravadas no estúdio do selo. No segundo disco, as seis faixas foram reinventadas por meio de remixes e intervenções de instrumentistas e produtores de destaque, como Rafa Jazz, Soul Provider, Dr. Drumah, DJ Dablyo, Vini Mendes, entre outros. 

Inspirado por selos históricos que deram voz à música instrumental brasileira – como Elenco, Forma, Som da Gente e Carmo – o Selo Vitrine busca manter viva essa tradição, ao mesmo tempo em que projeta novos caminhos para a produção independente. Além da coletânea inaugural, as mais recentes produções são o álbum Tons, primeiro trabalho autoral de DJ EB, e Saudade Bamba Beats, álbum do DJ Novset lançado em parceria com os selos Memória Discos e Made in Quebrada. Em paralelo aos álbuns e EPs, o Selo Vitrine também mantém uma série de lançamentos digitais de singles gravados em jam sessions n’O Picco, reunindo artistas como Igor Bollos, Eliza Basile e Vanessa Ferreira, e reforçando seu papel como articulador de uma cena pulsante e diversa. 

Agradecimentos: Marina Santa Clara Yakabe | Música Popular do Terceiro Mundo


** Este conteúdo foi enviado pela assessoria de imprensa

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